FABIANO JANTALIA
Diretor-geral da ESA-DF desde de julho de 2019.
Em sua conhecida “Oração aos moços”, Rui Barbosa já nos alertava que “um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”. No texto, originalmente destinado aos formandos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco de 1920, o insigne autor fez uma importante distinção entre o “saber aparente” e o “saber real”. Enquanto o primeiro é construído sobre “ciência alheia”, portanto, da mera absorção do conhecimento dos outros, o segundo é aquele que se apoia na transformação reflexiva dos conhecimentos absorvidos. Ou seja, a produção do “saber real” não se dá por mera reprodução ou paráfrase do que se lê ou vê, mas sim por meio de uma postura ativa e reflexiva do profissional, que, se muito, toma esse conhecimento como mero ponto de partida para construir suas teses ou soluções próprias.
Se analisarmos essas reflexões de Rui Barbosa à luz dos fenômenos e experiências recentes do mundo jurídico, é possível concluir que elas têm se relevado mais atuais do que nunca. O fato é que, nos últimos anos, por conta de inovações legislativas e, principalmente, tecnológicas, a realidade profissional do advogado tem passado por gigantescas mudanças.
A disseminação das ferramentas de busca, bem como de plataformas e repositórios de conhecimento baseados na internet (a começar pelos próprios sítios eletrônicos dos Tribunais) passou a escancarar a diferença entre o advogado “sabedor de aparências”, assim entendido aquele que apenas decora frases de pensadores ou conhece julgados específicos dos Tribunais, e o advogado dotado do “saber real”, que é aquele capaz de conceber soluções jurídicas consistentes, eficazes e eficientes para seus clientes. Afinal, qualquer pessoa passou a ter acesso à jurisprudência recente de um Tribunal ou a um “modelo” de contrato qualquer.
Mais recentemente, a incorporação de sistemas ou plataformas baseadas em inteligência artificial potencializou ainda mais o contraste entre o “sabedor de aparência” e o “sabedor real”. Isso porque, com ela, muitas rotinas de trabalho foram simplificadas, reduzindo custo, tempo e, principalmente, margem de erro dos trabalhos. Muito se tem falado então na “advocacia 4.0” ou, ainda em “nova advocacia”, que impõe aos advogados um duplo desafio: além de conhecer e manejar essas novas ferramentas e funcionalidades de tecnologia de informação, o mercado passou a exigir desses profissionais uma capacidade de inovação e de concepção de soluções jurídicas cada vez mais específicas. Dentro da lógica de Rui Barbosa, o “saber aparente” vem perdendo relevância a olhos vistos (até porque hoje já tem sido dominado pelas plataformas e algoritmos), ao passo que o “saber real” passa a ser o grande diferencial dos advogados.
Uma questão relevante então se apresenta: como preparar e formar advogados para que tenham esse “saber real”? O ponto de partida para essa resposta não é nada estimulante: a proliferação indiscriminada de cursos de direito no País, sem cuidados mínimos com a qualidade do ensino, não favorece em nada esse quadro. Infelizmente, grande parte das instituições de ensino estão muito mais para fábricas de diplomas de bacharel em direito do que para centros de formação de profissionais jurídicos. Ou seja, apesar da mudança no perfil da demanda do mercado, continuamos a ter no Brasil muito mais “sabedores de aparência” do que “sabedores reais”.
No âmbito do sistema OAB, o resultado prático desse fosso entre o que as faculdades entregam e o que o mercado precisa se apresenta de duas formas: primeiro, por meio de críticas absolutamente injustas ao exame de ordem – que apenas avalia a existência de predicados mínimos para o exercício da profissão; segundo, na forma de uma crescente demanda por ações educacionais voltadas a suprir essa lacuna de conhecimento.
No Distrito Federal, de modo especial, cada vez mais advogados (ou seja, aqueles com registro na OAB mesmo) têm procurado a Escola Superior de Advocacia (ESA-DF) em busca de ações educacionais para suprir seus déficits de formação. Ao fim e ao cabo, o que desejam esses profissionais são os conhecimentos, as habilidades e as atitudes que os permita acessar o “saber real” de que o mercado tanto necessita hoje.
A partir dessa reflexão e desse diagnóstico, iniciamos na ESA-DF no 2° semestre de 2019, um ambicioso projeto de reestruturação e modernização, baseado no conceito de planejamento estratégico. Reformulamos a filosofia de atuação, a oferta de disciplinas, a abordagem ou método de ensino e, mais recentemente, a própria estrutura física e de tecnologia de informação da Escola.
O primeiro passo foi a revisão da própria filosofia de atuação ou conceito da ESA-DF. Após uma longa reflexão e análise do mercado, decidimos posicionar a Escola como um centro de referência para a colocação, recolocação e aprimoramento profissional da advocacia. Ou seja, substituímos a abordagem clássica e dogmática por uma abordagem práticoprofissional. Com isso, a ESA-DF deixou de ser um espaço de meras disciplinas tradicionais para se tomar uma instituição que ministra cursos para propiciar o desenvolvimento de competências, habilidades e atitudes de nossos alunos, com vistas ao aprimoramento de seu desempenho profissional. Esse primeiro passo contou ainda com a aprovação de uma nova identidade visual e, ainda, com um lema oficial: “conectada com a nova advocacia”.
O segundo passo foi a reformulação completa da sistemática de oferta de disciplinas. Em lugar de nos prendermos à mimética reprodução de oferta de cursos baseados apenas em disciplinas tradicionais, passamos a fazer um constante monitoramento do mercado para identificar tendências e nichos novos de advocacia. Deixamos de lado a abordagem de oferta passiva (ou seja, baseada no que já se conhece) para adotar uma oferta propositiva, moldada para preparar profissionais a enfrentar os novos nichos de mercado.
Esse segundo passo foi consolidado com concepção do que chamamos de eixos temáticos estruturantes. Toda a grade de disciplina passou a estar distribuída por três eixos: formação, atualização e especialização.
O eixo de formação compreende o conjunto de cursos e demais ações educacionais da ESA-DF voltados para propiciar o acesso a conhecimentos básicos e fundamentais para o bom e consistente exercício da advocacia em determinado ramo do Direito. Esse eixo tem como público-alvo os advogados iniciantes, bem como aqueles advogados que, a despeito de já terem alguma experiência, precisam desenvolver ou aprimorar conhecimentos, habilidades e atitudes específicas. Estão compreendidos nesse eixo temático, entre outros, os cursos de oratória, redação aplicada ao direito, língua portuguesa, como também aqueles voltados para áreas específicas, como direito da moda, direito urbanístico, direito condominial e advocacia perante tribunais de contas.
Por sua vez, o eixo de atualização compreende o conjunto de cursos e demais ações educacionais da ESA-DF voltados para propiciar o acesso a novos conhecimentos em determinado ramo do Direito, decorrentes de inovação legislativa (ou seja, da edição de novas leis e regulamentos), de produção da literatura técnico-jurídica especializada e até mesmo da produção e da evolução jurisprudencial. Esse eixo tem como público-alvo os advogados em todos os estágios da carreira que busquem a atualização ou reciclagem de conhecimentos. Estão compreendidos nesse eixo temático, entre outros, os cursos de atualização em processo civil, processo penal e direito constitucional.
Por fim, o eixo de especialização compreende o conjunto de cursos e demais ações educacionais da ESA-DF voltados para propiciar o acesso a conhecimentos mais aprofundados e específicos em determinado ramo do Direito, com viés mais acadêmico. Esse eixo tem como público-alvo os advogados em estágio intermediário ou avançado na carreira que busquem conhecimento mais específico e sofisticado. Estão compreendidos nesse eixo temático, entre outros, cursos de extensão e cursos de pós-graduação lato sensu, bem como as ações educacionais voltadas para o estímulo da produção científica.
O terceiro passo foi a normatização e manualização de todos os procedimentos da ESA-DF. Foram então editadas três portarias, que versaram sobre celebração de parcerias, práticas docentes e política de concessão de bolsas e descontos. Com isso, muito do que era feito com base em mera tradição ou repetição de práticas, passou a estar devidamente normatizado.
Essa etapa também compreendeu a completa reformulação do “manual dos professores”, com orientações mais claras e consistentes a todos os docentes. Criamos um capítulo específico para as “orientações acadêmicas”, deixando claro a todos a nova proposta de atuação da Escola, focada na prática profissional. Em linha com esse foco e esse propósito, passamos a incentivar fortemente os docentes da ESA-DF a ministrar um novo tipo de aula: em lugar do ensino tradicional e dogmático, todos foram instados a promover a exposição dialogada de conteúdo durante as aulas, de modo a criar um ambiente saudável de interação com os alunos. Passaram então a ser especialmente recomendadas, nas aulas, a realização ou resolução de estudos de casos, a análise de decisões judiciais e proposições legislativas, bem como a simulação de problemas ou situações nas quais o conteúdo teórico ministrado no curso poderá vir a ser aplicado.
Por sua vez, o quarto passo foi a profissionalização da gestão da escola. Antes excessivamente dependente da figura do diretor-geral e contando apenas com um chefe de secretaria, a ESA-DF teve sua estrutura organizacional totalmente reformulada. Passamos a contar com duas coordenações, sendo uma exclusivamente para as questões acadêmicas e outra para as questões administrativas. Os funcionários da escola passaram a ter metas e atribuições especificas. A ESA-DF também passou a ter uma nova estrutura física, com um confortável espaço para essa nova área administrativa.
O quinto e talvez mais visível passo foi a completa virtualização do atendimento e da oferta de cursos da ESA-DF. Inicialmente, concebemos um novo site para a Escola, que passou a reunir toda a documentação sobre nossa atividade, além de um moderno sistema de busca de cursos e palestras, onde o aluno pode se inscrever e até pagar seus cursos. O site também passou a ter uma completa central de serviços, com formulários específicos para cada tipo de demanda de alunos e professores, além de um robusto conjunto de “perguntas frequentes” para tirar as principais dúvidas de nosso público.
Esse último passo, ainda em andamento, envolve a migração da oferta dos cursos da ESA-DF para o meio virtual. Após um período experimental de lives no lnstagram e cursos gratuitos, começamos a oferecer cursos pagos via plataforma zoom. Em breve, teremos uma ampla e consistente plataforma de ensino a distância, já em fase de contratação e formatação. Nossa ideia é que, em breve, todos os cursos ministrados pela ESA-DF, já dentro da nova perspectiva prático-profissional, estejam disponíveis aos nossos alunos 24 horas por dia, sete dias por semana. Ou seja, a qualquer hora, em qualquer lugar, e por meio de qualquer dispositivo eletrônico, os alunos da ESA-DF poderão ter acesso ao conhecimento de que precisam para seu aprimoramento profissional.
Com todas essas medidas, temos a certeza de que estamos passos firmes e consistentes rumo a uma Escola bem estruturada e verdadeiramente sintonizada com as demandas de seus alunos com vistas à sua colocação, recolocação e aprimoramento profissional.
Artigo originalmente publicado na Revista OAB-DF 360º (Vol. 2 – Setembro de 2020).